Há sinais contundentes de que Lula se tornou muito maior do que ele próprio. Mais do que um novo governo, sua liderança proporcionou uma mudança na fisionomia, na musculatura e na desenvoltura do Estado e uma transformação das formas pelas quais a sociedade se relaciona com este Estado e com a política.
Antonio Lassance
Num auditório repleto, trabalhadores sem-terra e assentados da reforma agrária, de bonés vermelhos e bandeiras empunhadas, discutem crise civilizatória, democracia, sustentabilidade e disputa contrahegemônica. Mas se discute, na ordem do dia, 2010.
Reunidos em uma das mesas do Fórum Social Mundial Temático, na Bahia, os painelistas, representantes de organizações do movimento, trataram da relação íntima entre desenvolvimento inclusivo e democracia; da necessidade de políticas orientadas para as especificidades regionais (diferenças climáticas, diversidade de potenciais produtivos, de biomas e ecossistemas) e da distinção entre segurança alimentar e soberania alimentar.
Em seguida, o inventário de críticas ao que o Governo Federal supostamente poderia ter feito e não fez, além da marcação de posição sobre o que separa as políticas governamentais da orientação dos movimentos. Na conclusão de cada uma das falas, dois registros importantes: o primeiro, que 2010 é um ano de disputa política entre projetos distintos. O segundo registro é o de que esta disputa exigirá muita discussão para se alcançar unidade no campo de esquerda.
Traduzindo em bom português: os candidatos, em qualquer nível, devem estar preparados para apresentar propostas, ouvir críticas e assumir compromissos, se quiserem o apoio dos movimentos de trabalhadores rurais.
A questão agrária tem um traço em comum com inúmeras outras questões, como a Educação, a Saúde, a política macroeconômica: suas definições não se dão de forma isolada, no âmbito exclusivo da luta social setorial, mas no plano da política e na dimensão institucional, basicamente pela necessidade de inscrever os resultados da luta social na institucionalidade formal que orienta a ação do Estado.
O presidencialismo federativo brasileiro funciona à base de coalizões para governar, o que explica o fato de que os governos precisam contar com partidos que abrigam, em seus quadros, representantes de setores muitas vezes antípodas no que concerne a determinada questão setorial.
No Brasil, como em outros países presidencialistas, a possibilidade de se alterar o 'status quo' depende muito do presidente, mas não só dele. Seu governo precisa contar com supermaiorias em cada Casa do Congresso. Do contrário, a minoria pode se valer de dispositivos regimentais para atrasar ou mesmo bloquear a tramitação da pauta prioritária do Executivo. Tarefa árdua. Esta é uma das razões pelas quais, muitas vezes, as iniciativas do Executivo parecem tímidas diante da expectativa de alguns setores progressistas em particular, mesmo quando constituem um grande salto em termos institucionais e de avanço nas políticas públicas.
Por isso 2010 é tão importante. Trata-se de uma eleição que elegerá não só representantes, mas coalizões. Decidirá se a trajetória atual do Estado brasileiro e das políticas públicas em curso será acelerada ou interrompida.
Em 2006, ainda era muito cedo para se testar o quanto que os partidos de esquerda e as organizações populares teriam acumulado forças. Em oito anos, o teste passa a ser mais significativo. Já é quase uma década de uma experiência política inédita na política brasileira e que alterou profundamente o quadro social e econômico do País. Houve redução das desigualdades, o surgimento de uma classe média egressa de setores pobres, a ampliação das políticas públicas de proteção e promoção social e a reconstrução de várias áreas do Estado que haviam sido enfraquecidas, extintas ou desvirtuadas.
A trajetória do primeiro mandato, centrada no esforço de “arrumar a casa” e dar início a políticas de proteção social e promoção de direitos, foi devidamente ajustada, no segundo, para que o País acelerasse e consolidasse mudanças sociais e econômicas.
O grande teste, mais uma vez, é político. A consistência dos indicadores de popularidade do presidente Lula demonstra que seu legado tem se traduzido em reconhecimento político extraordinário. Há quem considere que tal prestígio está associado íntima e exclusivamente à figura do Presidente.
Há sinais contundentes de que Lula se tornou muito maior do que ele próprio. Ou seja, mais do que um novo governo, sua liderança proporcionou uma mudança na fisionomia, na musculatura e na desenvoltura do Estado brasileiro e uma transformação das formas pelas quais a sociedade (a plebe) se relaciona com este Estado e com a política. Tais mudanças trouxeram ingredientes de uma outra lógica para dentro da política brasileira.
O primeiro indicador importante está sendo dado neste exato momento em que se tem a chance de uma campanha de cunho plebiscitário (que independe do fato de haver mais de dois candidatos), na qual se percebe que os projetos são distintos e que o que está em jogo não são apenas os próximos quatro anos de mandato, mas os oito anos que passaram, a década que acabou de começar e o país que se projeta para o futuro.
Antonio Lassance, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), professor de Ciência Política e assessor da Presidência da República. É um dos autores do livro “Tecnologia social: uma estratégia para o desenvolvimento”.
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