Acompanhar o noticiário político atual, vindo do Congresso Nacional, é entrar num estado de frustração que parece existir há séculos no Brasil: por mais que se espere da classe política decisões sobre temas sensíveis, importantes para o desenvolvimento do país e o avanço da sociedade, as atuações dos congressistas apenas mantêm o ritmo de desmoralização da função legislativa, fazendo temer os defensores do evolucionismo, afinal, se o mais forte acaba suplantando o mais fraco, o Poder Legislativo conseguiria permanecer entre os outros dois poderes atuando de forma tão pífia?
CPI atrás de CPI. Escândalo seguido por escândalo. O Congresso Nacional parece estar em coma e respirando por aparelhos, atuando apenas em temas relacionados a sua própria existência e até mesmo em outros menores, como a manutenção do mandato de seus membros ou a reestruturação para manter o status quo (há termo para isso?). Como num corpo sobrevivendo sem personalidade, o dinheiro corre pelas veias e alimenta a estrutura burocrática que se mantém inerte. É necessário esconder da sociedade os gastos de cada um dos parlamentares? É discutível pagar viagens aos familiares com dinheiro público? Se na Inglaterra um parlamentar renunciou ao mandato por ter sido pego usando dinheiro público para pagar uma faxineira particular, por que os nossos brigam com a imprensa diariamente para justificar gastos ainda mais ilegais, mesmo o nosso Congresso Nacional sendo o mais gastador do mundo?
É nesse vácuo estatal que o poder Judiciário e o Executivo vêm trabalhando, substituindo o Poder Legislativo sem a mesma legitimidade fundamental para a criação do direito. Os piores exemplos disso são as medidas provisórias do Executivo e o ativismo legislativo do Judiciário. As velhas conhecidas MPs , desde o final da ditadura, são leis editadas nas hipóteses de relevância e urgência, pelo chefe do Executivo, e referendadas pelo Legislativo. É unânime o entendimento de que a maioria avassaladora das medidas provisórias é inconstitucional por não possuir um destes requisitos. Além de subtrair parcela do poder de legislar, estes atos normativos também trancam a pauta, impedindo a votação de outras leis pelo Congresso Nacional. O Executivo acaba legislando e impedindo o funcionamento do Legislativo numa só tacada. Isso há mais de vinte anos...
O ativismo legislativo do Judiciário também causa estragos. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu manter a demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol e discutiu as limitações da reserva do território, além dos poderes que a população indígena teria sobre ele. Desnecessário lembrar que todas as limitações, como disse o Ministro Marco Aurélio na respectiva sessão do tribunal, estão presentes na Constituição Federal, tornando desnecessária a criação de qualquer regra no julgamento da ação para a efetivação da decisão. O maior temor dos julgadores, trazido pelo comando do Exército, seria de que haveria a possibilidade da população indígena impedir o acesso dos militares e dos membros dos poderes do Estado à reserva, já que apenas um antigo decreto garantiria este direito. Tal entendimento não é correto. A reserva faz parte do território nacional e apenas o Brasil possui soberania, fundamento de nossa república que impede a autonomia excludente de qualquer parte do território. Criou-se um clima de insegurança sobre um tema vencido, sob o argumento da demonstração aos povos indígenas de quais seriam os limites da reserva instituída. O tal efeito educativo-legislativo da discussão na seara judicial contribuiu para o surgimento de dúvidas sobre o futuro da região demarcada.
Outra recente incursão do Judiciário sobre as atribuições do Poder Legislativo foi o reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei de Imprensa. Com apenas um voto contra este entendimento, numa ADPF (ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), proposta pelo PDT, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade da lei desde a promulgação da atual Constituição Federal, em 1988. Promulgada em 1967, durante o regime militar e anterior ao AI-5, a Lei de Imprensa criminalizava várias condutas jornalísticas atualmente tratadas pela legislação comum, além de permitir medidas absurdas como a apreensão cautelar de exemplares de periódicos visando evitar danos oriundos de práticas que qualificava como criminosas. A descaracterização judicial da constitucionalidade da lei, que vinha sendo aplicada desde a promulgação da atual Constituição em diversas condenações criminais, criou um estranho vácuo onde os condenados durante o período de vinte anos entre a Constituição de 1988 e o reconhecimento da não-recepção da Lei de Imprensa permanecem. Se as condutas ali definidas como crime não foram recepcionadas pela Constituição de 1988, como várias pessoas foram condenadas durante vinte anos? Pessoas que cumpriram penas alternativas foram sentenciadas com base em crimes que, na verdade, não eram crimes?
Como explicar a bagunça ao cidadão comum? Quem vai reparar os prejudicados pela morosidade do Estado neste reconhecimento?
Resta claro que a Lei de Imprensa deveria ter sido revogada através de outra lei editada pelo Poder Legislativo. A discussão sobre a necessidade da vigência da arcaica Lei de Imprensa era uma tarefa da sociedade e de seus representantes, não do Supremo Tribunal Federal, onde os ministros não foram eleitos pelo povo e nem escolhidos para legislar. Diante da inércia do Congresso no trato do assunto, o tribunal deveria ter dado apenas um "puxão de orelha" no Legislativo para instigá-lo a discutir o tema no momento mais breve possível, buscando que a sociedade reconhecesse a importância da liberdade de imprensa e trazendo o debate para o espaço público, como ocorre nas democracias desenvolvidas.
Aos poucos o próprio Legislativo vai abrindo mão de suas atribuições. Na petição inicial da ação distribuída pelo PDT para reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei de Imprensa, em determinado momento, na página 48, o partido político explica:
"Sendo o Autor da ADPF, um partido político, pode gerar perplexidade a judicialização da matéria, que poderia ser atacada pela via congressual. A explicação está em MAQUIAVEL, n'O Príncipe:
... não há coisa mais difícil, nem de êxito mais duvidoso, nem mais perigosa, do que o estabelecimento de novas leis. O novo legislador terá por inimigos todos aqueles a quem as leis antigas beneficiavam, e terá tímidos defensores nos que forem beneficiados pelo novo estado das coisas. Essa fraqueza nasce parte do medo dos adversários, parte da incredulidade dos homens, que não acreditam na verdade das coisas senão depois de uma firme experiência."
Depois de quase quinhentos anos, Maquiavel parece ter alcançado seu intento: concentrar todos os poderes nas mãos de poucos e convencer aqueles que abriram mão dele da importância do absolutismo.
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