07/11/2007
"Maculada de sangue e de lama, a velha carroça da monarquia dos Romanov tombou logo no primeiro golpe". Aquilo que Lênin dizia da Revolução de Fevereiro, que havia derrubado o antigo regime imperial, poderia ser dito da mesma forma da Revolução de Outubro. A "carroça" da jovem democracia russa, por sua vez, também tombou, bastando para tanto um simples empurrão com o ombro, por parte do partido bolchevique.
Tanto num caso como no outro, é possível encontrar múltiplas explicações, mas, a mais importante, que pesa infinitamente mais do que todas as outras, é a guerra. A terrível sangria dos três primeiros anos da Primeira Guerra Mundial (2,5 milhões de soldados mortos) havia minado o czarismo e revelado a incapacidade das suas elites. E foi o prosseguimento da guerra, depois da imensa esperança suscitada pela Revolução de Fevereiro, que condenou os "democratas" russos. No espaço de alguns meses, eles tiveram todo o tempo necessário para fazer a demonstração das suas fraquezas frente a homens decididos a praticar a política do pior.
Caso eles tivessem tido a vontade de proceder dessa forma, não há certeza alguma de que Kerênski e os outros membros do governo provisório teriam tido condições de retirar a Rússia do primeiro conflito mundial. Os aliados ocidentais exerciam então uma pressão considerável, enquanto a sociedade russa talvez não estivesse preparada para aceitar uma derrota. O fato é que eles deram prosseguimento ao esforço de guerra, e que eles decidiram até mesmo empreender, em junho de 1917, uma vasta ofensiva que não demorou a se transformar numa catástrofe. Esta foi quase que imediatamente seguida pelos motins de julho, desencadeados espontaneamente por soldados que se recusavam a serem enviados para o massacre. Os bolcheviques se contentaram, então, de subir no bonde que estava andando, não sem hesitação.
REVOLUÇÃO RUSSA |
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Lênin se dirige ao povo durante comemorações do primeiro ano após a Revolução Bolchevique |
PARTE 1: GOLPE DE ESTADO |
PARTE 3: "TUDO É PERMITIDO" |
Esses levantes foram reprimidos pelo governo provisório, mas o processo de decomposição da autoridade sobre um exército essencialmente composto por camponeses, e que a partir dali se alastrou por toda a sociedade, não chegou a ser interrompido. Motins, massacres de oficiais, deserções em massa se multiplicaram no decorrer do verão e do outono de 1917. Em outubro, foram novamente os soldados e os marinheiros, muito mais do que os operários, que atuaram ao mesmo tempo como os atores e como os instrumentos da insurreição bolchevique.
Ao longo dos oito meses que separaram as duas "revoluções", o poder foi controlado por um governo que se apoiava em coalizões heterogêneas, nas quais democratas sinceros, porém neófitos, coabitavam com uma direita antes contra-revolucionária. Para fazer frente a uma situação extraordinariamente difícil, a um exército em processo de desagregação, a uma produção industrial em queda livre, a condições de abastecimento deploráveis, à violência e à anarquia que se alastravam pelo mundo rural, os responsáveis da nova democracia russa deveriam ter dado mostras de um talento e de um estofo fora do comum.
Em vez disso, eles se perderam, até mesmo nos momentos mais decisivos, em discussões intermináveis e em discursos (Kerênski era, assim como Trótski, um excelente orador, que acabou acreditando um pouco em demasia nas virtudes do seu próprio verbo). Mesmo quando eles recorreram à força, eles o fizeram com certa contenção, sem se aproveitarem da sua vitória. Depois do fracasso dos levantes de julho, Lênin havia confessado a Trótski: "Agora, eles vão fuzilar todos nós; este é o momento propício para eles". Ele mesmo teria procedido desta forma, sem dúvida alguma, mas não Kerênski. Este se limitou a mandar prender alguns dirigentes bolcheviques (Lênin tivera tempo necessário para se refugiar na Finlândia), que ele mandou libertar dois meses mais tarde, em setembro de 1917.
"As suas mãos tremiam", conforme Trótski resumiria mais tarde. Até mesmo os socialistas revolucionários (SR), então muito mais populares do que os bolcheviques, principalmente nas regiões rurais, e que no passado haviam se especializado nos métodos terroristas, tinham se convertido ao legalismo. Neste contexto, tanto Tchernov, o chefe dos SR, quanto Martov, o chefe da facção mais esquerdista do partido menchevique - o "Hamlet do socialismo democrático", segundo Trótski -, alimentavam hesitações de intelectuais e uma recém adquirida preocupação de respeitabilidade.
Do outro lado, havia bolcheviques desembaraçados de quaisquer dúvidas existenciais, determinados a utilizar a revolução para impor o seu poder. Nem todos, a bem da verdade, estavam na mesma sintonia. Kamenev, por exemplo, não teve idéia melhor, no mesmo dia do golpe de Estado bolchevique, que a de fazer votar a abolição da pena de morte pelo soviete (conselho regional) de Petrogrado, o que suscitou comentários sarcásticos de Lênin... Este último sabia exatamente o que ele queria. Este "iluminado que trabalhava no escuro" (a fórmula, mais uma vez, é de Trótski) não tinha outro objetivo a não ser incentivar a confrontação, a violência. Durante as semanas que antecederam o golpe de Estado, ainda refugiado na Finlândia, ele escrevia cartas e mais cartas para os dirigentes bolcheviques, manejando o insulto e a ameaça, para intimá-los a agir; a tal ponto que algumas das suas missivas foram censuradas, e até mesmo queimadas pelos seus camaradas.
Lênin tinha então 47 anos. A sua aparência física não era verdadeiramente aquela do revolucionário de cara quadrada que seria vista mais tarde em retratos estilizados, exibidos em todas as cidades da URSS. Aliás, o jornalista francês Claude Anet descreve a sua aparência nos seguintes termos: "Um homem bem cuidado, que usa roupa branca, trajes bem cortados; ele tem a nuca gorda de um burguês; a aparência de um tabelião de província do Segundo Império, falso e sorridente..." O mesmo Anet, dividido entre a repulsa que lhe inspiram os métodos dos "maximalistas" (conforme eram designados os bolcheviques na imprensa francesa, na época) e certa admiração pela sua eficiência, faz ironia a respeito deste "demagogo infalível", que sabe tudo e tem resposta para tudo: "Dê uma folha de papel para Lênin, um lápis, e, num piscar de olhos, ele lhe fornecerá a solução exata para todos os problemas sociais. Que homem feliz! E pensar que ele vivia como um sujeito obscuro, em algum canto da Suíça, e que o mundo ignorava o seu salvador!".
Salvador do mundo, isso será para mais tarde, quando o culto aparecerá. Depois de um atentado fracassado contra ele, um propagandista afirmará em setembro de 1918: "Lênin de modo algum poderia ser morto, porque ele é a ressurreição dos oprimidos". Enquanto isso, ele é, sobretudo, um destruidor encarniçado do antigo mundo. Para ele, a revolução não pode ser de outra forma, a não ser violenta, e é indispensável que ela assim seja.
Já em setembro de 1917, enquanto ele ainda se encontra em Vyborg, na Finlândia, e nada pode fazer senão enviar cartas furiosas para os seus camaradas de Petrogrado, ele exalta a futura guerra civil, "a forma mais aguda da luta das classes", e "os rios de sangue" que proporcionarão ao partido "uma vitória certa". Tanto antes como depois do golpe de Estado, ele não se cansa de aporrinhar os bolcheviques, de incentivá-los a esmagar ou a matar todos aqueles que poderiam opor-se a eles, de lembrar-lhes de que o Estado proletário é "um sistema de violência organizada".
É num texto de autoria de Lênin, redigido em dezembro de 1918, que se pode ler um apelo para "livrar a terra russa de todos os insetos daninhos". "Aqui serão mandados para a prisão uma dúzia de ricos, uma dúzia de escroques, uma meia dúzia de operários que relutam a trabalhar. (...) Em outros lugares, eles terão que exibir um cartão amarelo, de modo que o povo inteiro possa vigiar essas pessoas perversas. (...) Ou ainda, será fuzilado no mesmo local um indivíduo em cada dez culpados de parasitismo". O texto é lindamente intitulado "Como organizar a competição".
Lênin tem como única obsessão excitar o ódio, e, neste anseio, a sua linguagem logo alcança ápices insuperáveis. Quer ele declare a "guerra até a morte aos ricos"; quer ele incentive o "terror de massa" depois das greves dos operários contra os bolcheviques, em junho de 1918; quer ele ordene, logo no verão de 1918, a "guerra implacável contra os cúlaques" (camponeses ricos), que ele qualifica alternadamente de "vampiros, aranhas, sanguessugas", ou contra o clero, ele sempre se refere à morte, ao extermínio. É também ele que, mais discretamente, determina as cotas de pessoas que devem ser liquidadas, por região e por categoria; é ele mesmo quem acrescenta nos seus telegramas a menção "a fuzilar". O estilo, é claro, atrai seguidores e, em setembro de 1918, o jornal "Krasnaïa Zvezda" conclama a "matar os inimigos aos milhares, e a afogá-los no seu próprio sangue", "mais sangue, a maior quantidade de sangue possível".
Estranhamente, este fanatismo não o impedia de dar mostras, em inúmeras circunstâncias, de uma grande habilidade tática, de um excepcional talento político. Do seu ponto de vista, ele estava certo ao pressionar os bolcheviques a agirem no outono de 1917: Kerênski, que havia empenhado toda a sua energia em debelar o putsch do general Kornilov - concebido inicialmente como uma ação militar destinada a dar apoio ao governo - estava extraordinariamente enfraquecido, e, com isso, o poder só precisava ser colhido.
Da mesma forma, o fato de proclamar "todo o poder para os sovietes" permitia dissimular por certo tempo as reais intenções dos bolcheviques. Além disso, o fato de decretar que a terra pertencia aos camponeses, nada mais fazia do que sacramentar uma situação de fato (nas regiões rurais, no decorrer de todo o ano de 1917, os camponeses já haviam amplamente dividido entre si os domínios dos proprietários). E ainda, ao reconhecer, ao menos em palavras, a livre determinação dos povos da Rússia, ao afirmar a sua vontade de pôr fim à guerra, Lênin, com tudo isso, correspondia amplamente às expectativas daquele momento: nada impediria, mais tarde, de torcer o pescoço de todos esses nobres princípios.
Tradução: Jean-Yves de Neufville
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2007/11/07/ult580u2752.jhtm
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