quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Revolução de Outubro de 1917 - parte 3: "tudo é permitido"


08/11/2007

Jan Krauze

Sozinho, o Partido Bolchevique teria sido totalmente incapaz de conquistar o poder. Os sovietes (conselhos regionais), que minavam a autoridade do governo provisório; os soldados amotinados e os operários de Petrogrado; os desertores, os camponeses que por iniciativa própria haviam se apoderado das terras, e até mesmo a pequena burguesia dos intelectuais da qual eram originários praticamente todos os militantes revolucionários, todos eles, à sua maneira, haviam solapado o regime "democrático" nascido da Revolução de Fevereiro. Foi precisamente contra todas essas categorias sociais que os bolcheviques, imediatamente após terem se resignado aos comandos, se voltaram, movidos por uma brutalidade fora do comum.

A liquidação da oposição propriamente política, integrada por aqueles que ainda acreditavam nos princípios fundamentados no lema "todo o poder para os sovietes", foi despachada tão fácil quanto rapidamente. Logo em 8 de novembro, um dia depois do golpe de Estado, todos os principais jornais não bolcheviques de Petrogrado são fechados. As eleições para a Assembléia constituinte, organizadas em novembro e dezembro de 1917, mostram que o partido de Lênin é muito minoritário no país: a própria Assembléia, que foi aberta de maneira apenas formal em janeiro de 1918, é imediatamente dissolvida. Três dias mais tarde, uma manifestação de protesto é desmantelada a tiros de metralhadoras, o que resulta numa dezena de mortos: é a primeira vez desde o desmoronamento do czarismo que forças representando o poder disparam contra uma multidão desarmada.

Dos antigos partidos revolucionários, somente os socialistas revolucionários considerados como de esquerda permanecem associados durante alguns meses ao poder, mas apenas de maneira formal. Em fevereiro de 1918, um dos seus membros, um comissário para assuntos de justiça, chocado por um decreto de Lênin que conclamava a "executar imediatamente todos os aproveitadores, arruaceiros e contra-revolucionários", argumenta que seria mais adequado chamar o seu ministério de "comissariado para o extermínio". Ele vê então o rosto de Lênin se iluminar, e ouve o chefe bolchevique lhe responder: "É exatamente isso, mas nós não podemos dizê-lo abertamente"...
REVOLUÇÃO RUSSA
AFP/TASS
Lênin se dirige ao povo durante comemorações do primeiro ano após a Revolução Bolchevique
PARTE 1: O GOLPE DE ESTADO
PARTE 2: A MARCA DE LÊNIN


Em relação aos operários, o caso revela-se um pouco mais demorado para ser solucionado. Nas usinas seduzidas pela tentação da autogestão, mas que Lênin colocou sob a autoridade do Estado, o poder aquisitivo dos operários está em queda livre, enquanto o abastecimento é catastrófico. As greves se multiplicam. Logo no mês de maio, as forças da repressão atiram contra uma multidão de operários num subúrbio de Petrogrado, enquanto uma ameaça de greve geral é debelada em junho - quando dezenas de líderes são executadas. Em breve, por toda a Rússia, a resistência dos operários que recusam o trabalho forçado aos domingos protestam contra um racionamento que impõe a fome, ou que simplesmente repelem o terror é aniquilada por meio da força.

Em março de 1919, 10.000 operários das usinas Poutilov se reúnem para denunciar "a ditadura do comitê central e da Tcheka", referindo-se ao serviço secreto criado em 20 de dezembro de 1917, sob a autoridade de Félix Dzerjinski, para combater os inimigos do regime bolchevique. A usina é tomada à força e 200 operários são mortos, fuzilados por um pelotão de execução. No Sul, em Astrakhan, um regimento de infantaria recusa-se a atirar contra uma manifestação de operários. Então, a Tcheka, enfurecida, perde o controle dos seus atos e afoga entre 2.000 e 4.000 operários e soldados recalcitrantes.

No início de 1920, um editorial do "Pravda" afirma que "o melhor lugar para um grevista, aquele pernilongo amarelo e nocivo, é o campo de concentração". Lênin se mostra ainda mais radical ao exigir "execuções maciças" de modo a debelar uma greve de ferroviários. A militarização da economia, que é o cavalo de batalha de Trótski, torna toda greve assimilável a uma traição. A situação alcança extremos dificilmente imagináveis, como a execução de reféns - operários - se as cotas de produção que foram fixadas para a usina não tiverem sido cumpridas.

A prática de fazer reféns torna-se uma das constantes deste período revolucionário. Milhares de pessoas são presas como reféns, nas famílias dos grevistas, naquelas dos desertores ou simplesmente em meio às classes sociais consideradas como nocivas. Os jornais da Tcheka, a qual instituiu uma comissão extraordinária encarregada da repressão sob as ordens de Dzerjinski, publicam com satisfação, estatísticas a respeito do número de reféns que foram fuzilados ou enforcados - 40 aqui, 150 acolá...

Em nenhum outro lugar, contudo, os massacres alcançam proporções tão importantes como no campo. Já em 1918, e pelo menos até 1922, a prática generalizada das requisições de colheitas - das quais as exigências não raro revelam-se acima da produção efetiva - provoca centenas de revoltas. Elas são reprimidas por todos os meios - torturas, execuções, aldeias incendiadas, e até mesmo intoxicadas por gás letal - e, sobretudo, pela fome, tão extrema que ela conduz, principalmente na região do rio Volga, ao surgimento, numa escala até que bastante importante, do canibalismo - quando indivíduos desesperados chegam a ponto de comer os seus próprios filhos.

É a disseminação dessas revoltas de camponeses, e daquelas dos cossacos, considerados como uma classe que precisa ser liquidada, que explica numa ampla proporção a progressão muito rápida dos exércitos brancos, na Rússia meridional e na Ucrânia, em 1919, apesar da fortíssima superioridade numérica do Exército vermelho. Mas os Brancos, da mesma forma, também praticam o terror e tomam reféns. Acima de tudo, eles não se conformam com a situação e não admitem a realidade da partilha das terras. Assustados pela perspectiva de um retorno do antigo regime, e, junto com ele, dos antigos proprietários, os camponeses se afastam deles. Depois de uma série de retiradas e de avanços espetaculares, acompanhados por toda parte de massacres e de atrocidades sem equivalentes, os Vermelhos acabam levando a melhor.

A extraordinária violência que ensangüenta a Rússia está em conformidade com a vontade explícita dos dirigentes bolcheviques. Tendo em Lênin o seu mais feroz partidário, eles se dedicaram incansavelmente não apenas a incentivá-la como também a exaltá-la, com uma espécie de lirismo sádico. Mas esta violência sempre se mostrou muito presente no tecido social russo. No decorrer de séculos, uma aristocracia minoritária impôs uma dominação esmagadora à massa dos camponeses. Com a guerra, e depois com a revolução, todas as formas de contenção foram detonadas, o que fez com que a violência se alastrasse por todos os lados, sob todas as formas, da revanche social até o puro banditismo.

Logo em 1918, o general Denikin, que mais tarde iria se tornar um dos chefes dos Brancos, e que percorre então incógnito a Rússia de trem, é assombrado pelo "ódio sem fim" que ele percebe por todo lugar, "um ódio acumulado no decorrer dos séculos, a amargura daqueles anos de furor e a histeria engendrada pelos chefes revolucionários". É este ódio que os bolcheviques incentivam em seu proveito. Segundo afirma Dzerjinski, estes "não existem para outra coisa, a não ser canalizar e dirigir o desejo legítimo de vingança dos oprimidos".

Com a ressalva que, na realidade, evidentemente, trata-se de proteger uma ditadura, e que esta maneira de "canalizar" o ódio dá margem aos excessos mais ignóbeis. A Tcheka conta rapidamente em suas fileiras uma quantidade muito maior de criminosos perversos que de revolucionários inflexíveis. Eles torturam, roubam, prendem de maneira arbitrária, transformam as sedes dos seus comitês em "imensos bordéis para onde eles levam as burguesas", se dedicam a matanças em massa, "embriagados pela violência e pelo sangue", para retomar as palavras utilizadas na época por inspetores do partido. Afinal, por que não, já que, conforme explica um artigo publicado pelo "Gládio Vermelho", um jornal da Tcheka de Kiev, "para nós, tudo é permitido"?

O "trabalho" da Tcheka toma proporções tão desmedidas que os seus chefes são rapidamente estafados. Já em outubro de 1918, Dzerjinski é enviado discretamente para recuperar a sua saúde na pacífica Suíça. Este episódio, aliás, revela um traço pouco conhecido daqueles primeiros tempos de instauração do regime: as suas elites adotam sem demora um modo de vida que não tem absolutamente nada a ver com aquele das "massas", às voltas com a miséria mais negra. Lênin, Stálin e Trótski, entre outros, possuem os seus próprios lares, com suíte anexo para empregados. Trótski reservou para ele aquele do príncipe Ioussupov. Dentro do famoso trem blindado no qual, durante a guerra civil, ele percorre a Rússia para reanimar o moral das tropas, ele dispõe de uma mobília requintada e de uma cozinha do mais alto padrão.

Em Petrogrado, Zinoviev, onde quer que ele vá, é seguido por um cortejo formado por dezenas de prostitutas. "Apenas os comissários levam uma vida agradável pelos tempos que correm", escreve Máximo Gorki à sua mulher em 1919. "Eles roubam tudo o que for possível, com o único objetivo de pagar as suas cortesãs e os luxos muito pouco socialistas". De maneira mais humilde, os operários de uma usina de Perm solicitam, numa resolução, que "as jaquetas e os bonés de couro dos comissários sejam utilizados para fabricar sapatos para os operários"... Estes anos vêem proliferar uma classe muito vasta de burocratas, privilegiados pelo regime: em 1921, as usinas Poutilov não contavam mais do que 2.000 operários para 5.000 burocratas e executivos. É nesta burocracia que o regime soviético encontrará, no decorrer das décadas futuras, o seu mais fiel apoio.

O ano de 1921 constitui justamente, e provisoriamente, o fim do período extremista do regime. As revoltas de camponeses se multiplicam. As tripulações de dois encouraçados baseados em Kronstadt amotinam-se em março. Nos dois casos, o problema é solucionado por meio de canhões e de metralhadoras, mas Lênin conclui disso que ele foi longe demais, e impõe um limite às requisições, antes de permitir que o país recupere um pouco do seu fôlego ao implantar a Nova Política Econômica.

Antes de serem liquidados, os marinheiros de Kronstadt tiveram tempo para assinar uma proclamação, uma espécie de epitáfio da Revolução de Outubro: "Aos protestos dos camponeses, que se manifestam por meio de levantes espontâneos, e àqueles dos operários (...), os usurpadores comunistas responderam com execuções em massa e um banho de sangue, superando até mesmo os generais czaristas. A Rússia dos trabalhadores, a primeira a ter erguido a bandeira vermelha da liberação, está afogada no sangue".

Tradução: Jean-Yves de Neufville

Fonte: Notícias Uol

http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2007/11/08/ult580u2755.jhtm

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